30 Junho 2023
“Fazem falta figuras como Hannah Arendt, para quem a liberdade só é possível quando se pratica o perigoso exercício do pensar. Diante da incerteza do tempo presente, só resta seguir o preceito que permitiu à filósofa alemã sobreviver aos estragos do violento século XX: ‘Prepare-se para o pior, espere o melhor e aceite o que vier’”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 27-06-2023. A tradução é do Cepat.
O ser humano sempre nutriu a fantasia de controlar o curso da história. Nunca conseguiu, mas combateu a frustração produzida pela sua impotência distorcendo os fatos e mentindo abertamente. A dialética de Hegel é um exemplo de distorção, pois descreve o devir histórico como um astuto desenvolvimento do Espírito que culmina na perfeição do estado prussiano.
Por outro lado, os Papéis do Pentágono são apenas uma tosca mentira. Seu objetivo foi esconder da opinião pública a impossibilidade de vencer a Guerra do Vietnã e os bombardeios e incursões terrestres que os Estados Unidos haviam lançado contra o Laos e o Vietnã do Norte. Subtraídos pelo funcionário Daniel Ellsberg, os documentos começaram a ser publicados, em 1971, na primeira página do jornal The New York Times. Hannah Arendt refletiu sobre os documentos do Pentágono em seu breve ensaio intitulado A mentira na política, que mais tarde apareceria com outros textos no livro Crises da República.
Arendt aponta que “a sinceridade nunca figurou entre as virtudes políticas”. O sigilo, a farsa e as mentiras sempre foram considerados meios legítimos para alcançar certos objetivos. As mentiras sempre são mais atraentes do que a verdade, pois dizem ao público o que deseja ouvir e permitem ignorar os acontecimentos incômodos ou inesperados. A mentira pode chegar a ser contraproducente, mas graças a ela é possível se apoderar do passado, alterando os fatos para que coincidam com uma determinada perspectiva política.
Stalin ordenou que as imagens de Trotsky fossem apagadas, especialmente quando aparecia ao seu lado ou em momentos de particular importância histórica. Essas manobras são eficazes a curto e médio prazo, mas a longo prazo estão fadadas ao fracasso. Nenhum Estado pode controlar todas as bibliotecas e arquivos do planeta. Da mesma forma, nenhum Estado pode evitar vazamentos que tragam à luz suas artimanhas. Os Papéis do Pentágono não pretendiam enganar o inimigo, mas, sim, manipular o Congresso e a opinião pública para manter seu apoio na impopular intervenção bélica no Vietnã.
O próprio Robert S. McNamara, secretário de Defesa e artífice da farsa, reconheceu: “Não é agradável ver a maior superpotência do mundo matando ou ferindo gravemente, todas as semanas, milhares de pessoas não combatentes, enquanto busca subjugar uma pequena e atrasada nação, em uma luta cuja justificativa é asperamente discutida”.
A farsa orquestrada por McNamara não era uma simples estratégia propagandística. Sua intenção última era demonstrar que a intervenção no Vietnã não constituía um erro. Os Estados Unidos não podiam se permitir renunciar sua imagem de onipotência frente a outras nações. Além disso, precisava produzir imagens que garantissem sua hegemonia no imaginário coletivo. O governo estadunidense lutava contra o comunismo no Vietnã, mas seu propósito de fundo não era ajudar um governo amigo, mas conter a China no tabuleiro asiático, impedindo a expansão de sua área de influência.
McNaughton, um dos estrategistas do Pentágono, admitia que tinham adotado uma direção equivocada: “Sentimos que estamos tentando impor uma imagem dos Estados Unidos a povos distantes que não podemos compreender [...] e estamos levando esse assunto a extremos inconcebíveis”. As nações lutam pelos territórios e recursos, mas também para preservar seu prestígio, a marca que forjou com base em retórica e propaganda. O problema desse empenho é que propicia “o desdém voluntário e deliberado” pelos “fatos históricos, políticos e geográficos”.
Hannah Arendt destaca que as mentiras organizadas pelo governo estadunidense obedeciam a um propósito essencialmente psicológico: “criar um estado mental específico”. Os ingentes recursos materiais que foram consumidos na guerra e as grandes perdas de vidas humanas foram considerados um investimento razoável para sustentar a imagem dos Estados Unidos como o principal baluarte da democracia ocidental frente à ameaça comunista. Descartou-se negociar com o adversário para não incorrer em uma segunda Munique, em um novo pacto da vergonha com o inimigo, semelhante ao que Chamberlain e Daladier assinaram com Hitler.
Derrotar a guerrilha comunista no Vietnã era uma forma de “quebrar a vontade” do inimigo ideológico, mas o espírito dos combatentes vietnamitas era muito mais firme do que o dos jovens soldados estadunidenses. Os analistas de Washington não quiseram ver a realidade e não aprenderam com as sucessivas derrotas. O desprezo pelos fatos costuma ser uma das características dos ideólogos.
Hannah Arendt menciona a hipótese de que o presidente Truman lançou as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki para afugentar a União Soviética da Europa Oriental. Conseguiu exatamente o oposto, pois o Exército Vermelho chegou ao coração da Alemanha, dividindo o continente em duas regiões cuja beligerância alimentou, durante décadas, a possibilidade de um holocausto nuclear. Hannah Arendt conclui sua análise destacando que só uma imprensa livre e sem se corromper pode combater os abusos dos governos, trazendo à luz suas manobras desonestas.
A atual guerra na Ucrânia confirma a análise de Hannah Arendt. Vladimir Putin desprezou os fatos, pensando que sua “operação militar especial” seria um passeio que se resolveria em poucas semanas. Os Estados Unidos também desprezaram os fatos, mentindo para a opinião pública. Não se cansou de repetir que James Baker, secretário de Estado, nunca prometeu ao seu homólogo, Edvard Shevernadze, que a OTAN não avançaria uma polegada para o Leste.
Caso alguém questione, indico os documentos secretos que uma organização não governamental conseguiu desclassificar, em 2017, e tornou públicos com o título Expansão da OTAN: o que Gorbachev ouviu. Basta observar as fronteiras para comprovar que desde essa promessa, reiterada até três vezes, a OTAN não parou de se expandir para o Leste.
Nos anos 1980, São Petersburgo estava a quase 2.000 km das forças da OTAN. Essa distância foi reduzida para 150 km. Se a Ucrânia fosse incorporada à OTAN, o equilíbrio do terror seria rompido, pois Moscou não teria tempo para responder a um ataque nuclear. Assim como no Vietnã, os Estados Unidos tentam deixar muito claro que são a primeira potência mundial. A guerra na Ucrânia é apenas um instrumento para conter a influência da China e da Rússia.
Não parece casual que a expansão da OTAN para o Leste coincida com a ascensão de governos de ultradireita. Já foi dito que o objetivo da OTAN é defender a democracia, mas a Polônia e a Hungria, que pertencem à sua estrutura militar e política, não param de aprovar leis que retiram liberdades e direitos. Tudo sugere que o objetivo final é “balcanizar” a Rússia, assim como se fez com a ex-Iugoslávia, que foi bombardeada com urânio empobrecido pela OTAN, abstraindo-se da autorização da Organização das Nações Unidas. Não há imagens desses bombardeios, que custaram a vida de 5.000 civis.
Os bombardeios russos sobre a Ucrânia não são menos imorais, mas a verdade é que alguns mortos são exibidos e outros são escondidos. No entanto, não se conseguiu esconder que já há forças de elite da OTAN, integradas sobretudo por britânicos, operando na Ucrânia. The New York Times informou, em abril de 2023, que circulavam pelas redes sociais documentos classificados procedentes do Pentágono e que neles existiam informações sobre os planos dos Estados Unidos e da OTAN para fortalecer a contraofensiva da Ucrânia contra a Rússia.
Hannah Arendt sustentava que só uma imprensa livre e não corrompida pode neutralizar os abusos governamentais, mas a verdade é que os meios de comunicação ocidentais se alinharam unanimemente com a versão da OTAN, acusando aqueles que levantam objeções de simpatizar com Putin. Nenhum democrata pode sentir apreço pela autocracia corrupta de Putin, mas o que está em jogo ultrapassa qualquer reparo à sua forma de governo.
Os Estados Unidos sonham com a hegemonia mundial e adotaram uma estratégia muito perigosa, encurralando a seu velho adversário. Quando Nikita Khrushchev instalou bases de mísseis nucleares de médio alcance em Cuba, exigiram sua retirada imediata, ameaçando com uma resposta brutal, caso não ocorresse. Era previsível que a Rússia agisse de forma parecida diante do crescente cerco da OTAN.
O futuro é imprevisível, mas não há muitos motivos para ser otimista. O projeto europeu se dilui ou sucumbe a um déficit democrático pela ascensão de governos de ultradireita. Putin instalou uma ditadura pessoal na Rússia que persegue as minorias e que institucionalizou a corrupção, a repressão e a censura. E os Estados Unidos só pensam em ampliar seu poder e influência, criando cenários cada vez mais incertos e arriscados.
Quem sofre com essas manobras são os povos e poucas vozes se atrevem a refletir com independência. Fazem falta figuras como Hannah Arendt, para quem a liberdade só é possível quando se pratica o perigoso exercício do pensar. Diante da incerteza do tempo presente, só resta seguir o preceito que permitiu à filósofa alemã sobreviver aos estragos do violento século XX: “Prepare-se para o pior, espere o melhor e aceite o que vier”.
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Hannah Arendt: Os Papéis do Pentágono e a Guerra na Ucrânia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU